segunda-feira, 5 de novembro de 2007
Um grande vazio na herança cultural
Em seu livro, Stuart Kelly procura resgatar as obras que, se tivessem permanecido, teriam apontado para novos caminhos
Ubiratan Brasil
Como seria a cultura mundial hoje caso a famosa Biblioteca de Alexandria, considerada o centro cultural do mundo às vésperas da Era Cristã, não tivesse sido destruída há cerca de 1.400 anos? E o que dizer dos clássicos gregos e romanos que não sobreviveram ao tempo? Finalmente, o que mudaria na literatura se fossem terminados os trabalhos eternamente embrionários que seus autores planejaram e desenvolveram, mas nunca chegaram ao ponto de escrever? Tais questões martelaram durante muito tempo a cabeça do escocês Stuart Kelly que saiu à caça das obras que deixaram uma verdadeira lacuna em nossa herança cultural para escrever O Livro dos Livros Perdidos (434 páginas, R$ 54), que a editora Record lança nesta semana.
Como o trabalho teria uma dimensão extraordinária, Kelly se limitou aos clássicos, dos mais antigos aos contemporâneos. Assim, de Shakespeare a Sylvia Plath, de Homero a Hemingway, de Dante a Ezra Pound, ele listou grandes escritores que produziram obras perdidas, incapazes de serem lidas. “Houve muitas perdas lamentáveis, mas, em minha opinião, as mais sentidas foram as tragédias gregas, das quais apenas uma pequena fração chegou aos nossos dias, e a Biblioteca de Alexandria, destruída pelos conquistadores muçulmanos que acreditavam que o Alcorão era o único livro que deveria existir”, comenta o pesquisador.
A lista, na verdade, começou a ser montada quando, aos 15 anos, Kelly descobriu que não havia sobrado nada das obras de Agathon, celebrado dramaturgo e amigo pessoal de Eurípides. Movido pela curiosidade, ele saiu em busca do rastro de outros escritos e logo descobriu uma lista vasta e heterogênea.
Afinal, o primeiro trabalho de Homero (autor de Ilíada e Odisséia) foi supostamente um poema épico com matizes cômicos. Já as memórias do poeta Byron foram destruídas pelo próprio autor. E Flaubert, que sofria de convulsões, além de provavelmente ser epilético, ensaiou escrever uma novela sobre insanidade, mas a idéia ficou aprisionada em sua mente. “A história inteira da literatura era também a história das perdas da literatura”, observa.
Diversas razões podem explicar as perdas. Inicialmente, o material facilmente perecível utilizado pelo homem para armazenar sua cultura: cera, pedra, argila, papiro, papel e até mesmo corda, como é o caso da linguagem peruana dos nós, quipo. “Visto que tem uma dimensão material, a própria literatura compartilha a vulnerabilidade de sua substância”, comenta Kelly. “Todos os elementos conspiram contra ela: o fogo e a água, o ar ressecado que corrompe, a terra argilosa que se decompõe.”
A forma mais simples de perda, no entanto, é a destruição. Kelly lembra que o poeta do século 19 Gerard Manley Hopkins queimou toda a poesia que escrevera quando passou a dedicar sua vida à beleza de Deus. James Joyce atirou ao fogo Stephen Hero, o primeiro esboço de Retrato do Artista Quando Jovem, mas não impediu sua mulher de salvar o que pôde. Mikhail Bakhtin, exilado no Casaquistão, usou seu trabalho sobre Dostoievski como papel para cigarro, depois de ter fumado um exemplar da Bíblia.
Mesmo sem confirmação, há indícios de trabalhos que foram destruídos. É o caso de Sócrates que, quando estava preso aguardando a execução, escreveu versificações das Fábulas de Esopo. Nenhuma delas sobreviveu, restando apenas ecos baseados nos diálogos memorizados e inventados por Platão.
O acaso também colaborou para dizimar a cultura. Stuart Kelly lembra, por exemplo, que uma pasta com os originais de Ultramarino, de Malcolm Lowry, foi roubada do carro do seu editor, e a versão existente teve de ser reconstruída a partir do que foi encontrado nas caixas de anotações de Lowry.
Em muitos casos, o próprio autor morreu antes de concluído o trabalho.Virgílio deixou instruções para que A Eneida fosse queimada, já que não a havia burilado à perfeição. A polícia nazista impediu que o teólogo radical Dietrich Bonhoeffer terminasse sua dissertação sobre ética. O Romance de Dolliver, de Nathaniel Hawthorne, A Barragem de Hermiston, de Robert Louis Stevenson, e Denis Duval, de William Makepeace Thackeray, são lembrados como clássicos incompletos. Kelly observa ainda que Robert Musil e Marcel Proust não conseguiram aperfeiçoar suas volumosas obras-primas.
Finalmente, a categoria dos livros que foram deliberadamente perdidos. Ou seja, idéias e rascunhos abandonados por seus autores, insatisfeitos com o caminho tomado ou simplesmente interessados em outras histórias. A fila remonta à Grécia Antiga. Kelly lembra que Sólon, o legislador ateniense, estava ocupado demais em criar impostos a pôr em versos a história de Atlântida. Já Victor Hugo prometeu mas não escreveu A Quinquengrogne. “Teria sido Gaia, de Thomas Mann, a obra-prima que ele acreditava que seria enquanto ainda não escrita? Teria o jamais escrito Fala, América, de Nabokov, seqüência de suas lembranças (Fala, Memória), revelado mais acerca da composição de Lolita ou de seus trunfos de colecionador de borboletas?”, questiona Kelly. “Esses trabalhos são tão ambiciosos que sua finalização parece intrinsecamente impossível.”
As suposições levam a outro questionamento, cuja resposta é temerário dimensionar: perder-se é a pior coisa que pode acontecer a um livro? Além de, em certos casos, salvaguardar a reputação do autor (se o valor do texto for questionável), a obra perdida torna-se infinitamente mais atraente pelo fato de ser perfeita na imaginação.
Stuart Kelly afirma que, atualmente, é quase impossível acreditar em perda. O avanço tecnológico, que tanto é utilizado para desvendar documentos antes considerados indevassáveis (como os papiros descobertos em Herculaneaum, cidade soterrada em 79 d.C. quando o Vesúvio entrou em erupção), como no serviço de preservação, possibilita ao homem registrar seus passos com segurança. E qual a importância disso? “Ao tentar preservar o que nos torna humanos, provamos nossa própria humanidade”, responde Kelly.
Fonte: O Estado de São Paulo
http://txt.estado.com.br
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